Imagine-se por um momento na penumbra de uma basílica imensa. O murmúrio das orações é um sussurro que se eleva para as abóbadas. O seu olhar, como o de milhares de peregrinos antes de si, é atraído irresistivelmente para um ponto: um pequeno templo de mármore, jaspe e bronze, resplandecente sob a ténue luz de inúmeras lâmpadas e velas. É ali, naquele espaço que parece conter toda a luz do mundo, que se guarda o tesouro mais precioso de Aragão e um dos pilares da Cristandade: a coluna de jaspe – o Pilar – sobre a qual se ergue a venerada imagem da Virgem.
Esta é a Santa Capela (Santa Capilla) da Basílica do Pilar de Saragoça. Não é apenas uma obra-prima da arte barroca; é o epicentro de uma tradição milenar, o testemunho silencioso de um prodígio que deu origem a tudo, e o coração espiritual que bombeia fé, cultura e identidade para todo um povo. Este artigo é um convite para transpôr as suas grades e adentrarmo-nos na sua história, nos seus segredos e no seu significado profundo. Prepare-se para uma viagem que mistura lenda com história, arte com devoção.
A Origem: Uma Tradição Milenar que Alicerça a Fé
Para entender a magnitude da Santa Capela, devemos recuar à origem de tudo. A tradição, sustentada com firmeza pela Igreja, situa-nos na noite de 2 de janeiro do ano 40 d.C. Numa Saragoça então conhecida como Caesaraugusta, o apóstolo Santiago Maior, desanimado pela pobre acolhida da sua pregação na Hispânia romana, encontrava-se às margens do rio Ebro.
Foi então que viveu uma experiência que o marcaria para sempre: a Vinda da Virgem Maria em carne mortal – antes da sua Assunção ao Céu – para o confortar e lhe confiar uma missão. Como testemunho da sua visita, a Mãe de Deus deixou uma coluna de jaspe – um “pilar” – como símbolo da fé inabalável que ele devia fundar naquelas terras, e uma pequena imagem de si mesma sobre dito pilar. Este relato torna a Virgem do Pilar na primeira aparição mariana da história, um título que sublinha a sua profunda significação.
Sobre esse mesmo Pilar, Santiago e os primeiros convertidos construíram uma primitiva capela de adobe. Este lugar, marcado pelo sagrado, seria sucessivamente renovado e engrandecido ao longo dos séculos, mas conservando sempre no seu centro o mesmo Pilar e a mesma devoção. A atual Santa Capela é, portanto, a herdeira direta e a custódia dessa herança apostólica.
A Construção da Jóia Barroca: Uma Homenagem em Mármore e Bronze
Durante séculos, o Pilar e a imagem da Virgem estiveram abrigados em diferentes capelas dentro da igreja anterior à basílica atual. Só no século XVII se decidiu construir um espaço à altura da sua importância. O impulso definitivo veio de um facto extraordinário: o Milagre de Calanda.
Em 1640, um jovem camponês chamado Miguel Juan Pellicer, a quem tinham amputado uma perna, viu aparecer-lhe a Virgem do Pilar, que lhe restituiu milagrosamente o membro. Este evento, investigado e declarado oficialmente milagre pelas autoridades civis e eclesiásticas, comoveu a Espanha da época e avivou a devoção a níveis sem precedentes. As doações começaram a fluir, tornando realidade o sonho de uma capela nova e esplêndida.
O desenho coube ao arquiteto real Ventura Rodríguez, que em 1750 apresentou um projeto que mudaria para sempre a fisionomia interior do templo. Ventura Rodríguez concebeu a Santa Capela não como uma simples reforma, mas como um templo dentro do templo, uma jóia barroca independente que albergaria a relíquia. A sua genialidade consistiu em integrá-la na basílica de modo que, ainda que fazendo parte de um todo, se destacasse com personalidade própria.
Os Artistas que Deram Forma a um Sonho
Ventura Rodríguez coordenou uma dream team de artistas de primeiro nível:
- Os irmãos José e Manuel Ramírez de Arellano: Escultores da espetacular abóbada elíptica que coroa a capela, decorada com rocalhas, grinaldas e putti (anjinhos) que parecem flutuar no céu. O seu trabalho em estuque é de uma delicadeza e movimento arrebatadores.
- Damián Forment (numa obra anterior) e José Ramírez de Arellano: responsáveis pelo retábulo-mor de alabastro que precede ao camarín (o nicho da imagem), onde se representa a Vinda da Virgem.
- Os escultores da Santa Imagem: A talha gótica da Virgem que hoje veneramos, de 36 cm de altura, foi realizada por Juan de la Huerta no séc. XV, substituindo uma anterior. A coroa e as vestes (os famosos “mantos“) são acrescentos posteriores de incalculável valor.
- Os ourives e ferreiros: Que forjaram a grade monumental que circunda a capela, uma obra de arte em ferro que protege sem ocultar, permitindo aos fiéis rodearem completamente o lugar sagrado.
O material escolhido, mármore de diferentes cores, jaspes e bronzes, cria um jogo cromático de luzes e sombras que dirige toda a atenção para o centro: o Sagrado Pilar e a imagem da Virgem.
Um Percurso pelo seu Simbolismo e Elementos Chave
Cada centímetro da Santa Capela está carregado de significado. Não é uma decoração caprichosa; é uma narrativa visual da fé.
- O Oval Perfeito: A planta oval da capela não é casual. O oval, símbolo barroco por excelência, representa o ovo cósmico, a origem da vida, a perfeição divina. Envolve-o, inclui-o na cena, tornando o fiel participante do mistério que contempla.
- O Camarín da Virgem: É o sanctasanctórum, o lugar mais íntimo. Rodeando o Pilar, os peregrinos podem aproximar-se para o tocar (através de uma abertura ovalada prateada no manto) e passar por trás da imagem, um ritual que simboliza “acompanhar” a Virgem.
- A Coluna de Jaspe (O Pilar): Mede 1,77 metros de altura e tem um diâmetro de 24 centímetros. Sempre coberta por um cilindro de prata e pelo manto da Virgem (exceto em raras ocasiões: nos dias 2, 12 e 20 de cada mês, quando é mostrada a descoberto), é o objeto físico que se conecta diretamente com o milagre original. Tocá-la é tocar a história viva da fé.
- O Manto da Virgem: A Virgem do Pilar é provavelmente a imagem mariana mais “vestida” do mundo. Possui mais de 450 mantos diferentes, que são mudados conforme o calendário litúrgico e as festividades. Este ato de vestir a Virgem é uma mostra de carinho e devoção popular única.
- A Palavra “ARAGÃO”: Um detalhe curioso e pouco conhecido. Se observar com atenção a decoração de rocalha da abóbada, entre as suas formas abstratas, pode ler-se claramente a palavra “ARAGÓN”! Uma piscadela de olho dos artistas à terra que custodia este tesouro.
A Santa Capela Hoje: Centro de Peregrinação e Cultura Viva
A Santa Capela não é um museu. É um lugar de culto vibrante e vivo. É o destino final de milhões de peregrinos cada ano, que chegam de todos os recantos do mundo. É testemunha de venerações multitudinárias (besapiés), missas constantes, orações silenciosas e promessas cumpridas.
É, também, a alma das Festas do Pilar em Saragoça, quando a Oferenda de Flores enche a praça de cor e aroma, e cada um desses ramos é, na realidade, uma homenagem dirigida àquele pequeno espaço sagrado.
Mas a sua influência transcende o religioso. A Santa Capela é um símbolo de identidade para todos os aragoneses, crentes ou não. É a marca de um povo, a sua história talhada em mármore, a sua resiliência e o seu carácter. Inspirou pintores como Goya, literatos, músicos e gerações de zaragozanos que, simplesmente ao passar pela praça, sentem a tranquilidade de saber que ali, no coração da sua cidade, habita uma presença que os protege e acompanha.
Conselhos para Visitá-la e Vivê-la
Se vai visitar a Santa Capela, faça-o com calma. Não seja um turista mais; seja um peregrino, ainda que seja por uns minutos.
- Rodeie-a: Caminhe devagar à volta da sua grade. Observe os detalhes de todos os ângulos.
- Aproxime-se do oval prateado: Espere a sua vez, toque no Pilar através dele. É um momento para uma oração, um desejo ou um simples “obrigado”.
- Passe por trás: Não fique apenas em frente a ela. O ritual completo implica passar por trás, um gesto de proximidade e companhia.
- Olhe para cima: Deixe que o seu olhar se eleve para a cúpula elíptica. Deixe que a arte barroca eleve o seu espírito.
- Assista a uma missa: Mesmo que seja por uns minutos. Ouvir a liturgia naquele espaço confere-lhe uma dimensão completamente nova.
- Visite o Museu Pilarista: Aí poderá ver muitos dos mantos da Virgem, a coleção de joalharia e outros objetos doados ao longo dos séculos, que completam a história.
Conclusão: Mais que Mármore, um Símbolo Eterno
A Santa Capela do Pilar é, em definitivo, a materialização de uma fé inabalável. É o resultado de séculos de amor, de crença, de arte e de história condensados num espaço de beleza arrebatadora. Não é apenas o lugar que custodia uma coluna de jaspe; é o símbolo de que, sobre a fé mais simples e pura, se pode construir algo eterno e magnífico.
É o legado de Santiago, o génio de Ventura Rodríguez, a devoção de um povo e o amor de uma Mãe que, segundo a tradição, quis ficar entre nós para sempre. Em Saragoça, o coração não bate no peito; bate na Santa Capela do Pilar. Venha senti-lo.